quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Acaso


Caminhava pela madrugada de Berlim, perdido entre as strasses e o único ponto de referência que possuía: uma alta torre de rádio na Alexander Platz. A brilhante idéia de caminhar pouco agasalhado para o albergue no ar de 1 grau após a falha tentativa de encontrar o trem certo na estação central não parecia mais tão interessante. Apesar de caminhar à noite por ruas desertas de cidades ser um dos meus programas preferidos, a bexiga expandida impedia qualquer desfrutamento. De fato, em quaisquer outras circunstâncias eu estaria adorando a situação. A situação piorava quando eu perdia a torre de vista, ocultada pelos outros prédios, o que me obrigava a seguir apenas o meu senso de direção. Que fique claro que eu me perco até com guia. A caminhada que eu estimei em 10 minutos acabou levando algo em torno de 1h e meia, entre as tantas idas e vindas. Quando eu havia finalmente encontrado os arredores do albergue já passava da meia noite e, virando em uma esquina que anunciava o lançamento do novo video-game de ultima geração algo me chamou a atenção. Era uma igreja linda, e não pude deixar de observá-la por alguns instantes. Me vi dividido entre a bexiga e a beleza da igreja e imaginei que talvez fosse uma boa idéia pedir uns trocados na rua para conseguir pagar o banheiro público e poder admirar com calma aquela maravilha. As constantes viaturas me deixaram inibido para atender às minhas necessidades em uma moita qualquer. Fui até a esquina e comecei a abordar os transeuntes com uma moeda em uma mão e na outra a pergunta: "excuse me, could you change 2 euros for me?". Não consegui deixar de rir dos olhares de reprovação dos casais alemães que apressavam o passo após a minha delicada abordagem. Digamos apenas que não foram poucos. Eventualmente, no entanto, um grupo de texanos se solidarizou com a minha causa e me doou 50 cents. Talvez tenham ficado com pena de meus prováveis problemas mentais quando expliquei que só queria olhar a igreja mas precisava ir no banheiro antes. Resolvida a situação, acendi um cigarro e me acomodei na calçada oposta à igreja. Deitei no chão pra poder vê-la melhor, já que era muito alta. Devo ter passado algo em torno de uma hora com as mãos e as nádegas congeladas tentando descobrir o que tanto me atraíra naquela igreja. Ela era linda e monumental, sim, mas havia algo a mais. Percebi então que não havia deitado exatamente em frente a ela, como planejado. Eu estava um pouco à esquerda, fazendo com que todas as medidas e perspectivas rigorosamente planejadas e tão valorizadas séculos atrás se apresentassem meio enviesadas. Foi então que entendi. A igreja me lembrava ela: a menina do sorriso torto.

Viva o acaso.

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